O parto de 64 horas que tive o privilégio de acompanhar

As 40 semanas tinham ficado para trás, as 41 também e as 42 já cá estavam. Os sinais existiam mas eram pouco assertivos. O rolhão mucoso já estava a sair há uns dias, a “moínha” no baixo ventre também, as contracções ritmadas também davam, de vez em quando, o ar de sua graça, mas nada mais se desenrolava.

Segunda-feira tinha reunião marcada em Lisboa e perguntei-lhes se me podiam/queriam receber, que estava cheia de saudades! Acabamos por dar um passeio ao final do dia pela baixa e as contracções pouco dolorosas vinham a cada 20/25 minutos. Disse-lhe “Adorava ter um cartaz aqui a dizer “Esta mulher está em trabalho de parto!!”” e continuamos a subir a Avenida. Eram 20h, tinha combinado jantar com o Gonçalo e disse-lhes isso mesmo “Vou jantar e já volto.” Eles, ainda incrédulos com a possibilidade de o trabalho de parto avançar efectivamente nessa noite responderam “Hmmmm, vamos ver….”

Eram 22h30 e recebo mensagem “As contracções estão de 5 em 5 minutos há uma hora.” Acabo de jantar, vou pôr gasolina, dou um abraço apertado ao G. que ia para Barcelona uns dias, e sigo para Lisboa.

O ambiente era lindo! Luz baixa, ela apoiada na bola de pilates e ele a fazer-lhe massagem nas costas. As contracções mantiveram-se assim, já com dor e próximas durante as horas seguintes. As parteiras chegaram pelas 3h. A partir daqui, o que aconteceu foi uma viagem deliciosa e fascinante!

Este parto demorou 64horas. E eu nem sei por onde começar. O que pretendo com esta partilha é dar-vos a minha visão, como doula, como mulher e como eterna aprendiz da vida, desta viagem, sem ser demasiado íntima e invasiva no que diz respeito à privacidade deste casal.

Desde as últimas semanas de gestação que eu me emocionava com o respeito arrebatador que estes pais tinham para com o seu filho. O bebé não estava ainda totalmente encaixado e por isso, o trabalho de parto, teve início tão tarde. Esta mulher esteve sempre confiante em relação ao seu bebé e à sua capacidade de descobrir o caminho para a saída. Disse-lhes, algumas vezes, que ficava mesmo emocionada com eles e que este bebé tinha escolhido mesmo bem os seus pais, para que lhe dessem o tempo que ele precisava, sem pressa, nem pressão. Com amor, respeito e confiança divina nele. O parto também foi assim!

O cólo do útero ia dilatando, devagarinho, ao seu ritmo, mas o bebé não descia muito. As contracções eram eficazes porque o útero estava a dilatar, mas notava-se que o bebé não estava ainda completamente posicionado para iniciar a sua descida. E as horas foram passando. Pelo meio houve duches, houve bola de pilates, dança, abraços, massagem, aromaterapia, homeopatia, chás, bebidas específicas, movimentos corporais, mudanças de posições, vocalizações, respirações, conversas, dúvidas, música, piscina, pequenos almoços, almoços, lanches e jantares. As avaliações feitas mostravam sempre o mesmo – “Mãe e bebé óptimos”, por isso, continuaríamos a dar o nosso melhor para permitir que o processo se desenrolasse.

A dilatação continuava a progredir, a bolsa amniótica continuava íntegra, o bebé continuava a ajustar a sua posição para encontrar a descida e as dores na mãe estavam cada vez mais intensas e o cansaço mais visível.

Quarta feira de manhã já se tinham vivido mais de 36 horas de trabalho de parto e a verdade é que o bebé ainda não tinha encaixado perfeitamente. Nesta altura, através de palpação, percebeu-se que ele estava a colocar-se posterior o que tornaria tudo muito mais difícil. Isto é, o parto vaginal era possível, mas as dores na lombar seriam tão fortes que sem analgesia era complicado. A hipótese de fazer transferência para o hospital foi colocada em cima da mesa e, com total consciência, os pais decidiram.

A hipótese de parto em casa terminava ali. Expectativas criadas deitadas por água a baixo. Emoções à flor da pele. Sensação de “não ser capaz” a vir ao de cima. Vozes alheias a invadir a mente. E o que vão dizer? E o que vão pensar? Afinal tinham razão? Não era possível que aquele bebé nascesse em casa? Não era possível que nascesse de parto vaginal? Respirar fundo várias vezes, olhar para os factos. De facto, o corpo da mulher estava a fazer tudo para que o bebé nascesse, e o bebé estava a fazer de tudo para nascer. Ainda assim, faltava ali um “click”.

Antes de decidir para que hospital iriam, as parteiras fizeram uma chamada. A obstetra-anjo estava de serviço e podia recebê-la. De novo, a esperança a voltar!

Perguntaram-me “Vais acompanhá-los no hospital?” “Hmmm…será que posso? Não pensei nisso! Mas sim, irei e logo se vê.”

Fui no meu carro, apanhei um trânsito infernal e na minha cabeça a voz “Não vais chegar a tempo e não te vão deixar entrar. Vais fazer esta viagem para nada. Ainda assim, continua.”

Cheguei ao hospital, ela já tinha entrado e ele estava na sala de espera. Bem dita a hora que fui. Deixar um pai, sozinho, na sala de espera durante 2 horas é terrível. Só por isso, já tinha valido a pena ter ido para o hospital com eles.

Às 21h30 de Quarta-feira podemos entrar e eu pude ficar no bloco de partos com ela e com o pai!!! Que felicidade!

A dilatação continuava como estava desde que tinha entrado no hospital e o bebé, na mesma. Foi importante voltar a criar ambiente protegido, luz baixa, mantas enroladas para não ter frio, música calma e mantras para atrair positividade e protecção. Com epidural ela tinha conseguido dormir e isso tinha sido muito importante para repor alguma energia e reservas. Alguns procedimentos médicos foram sugeridos, justificados e aceites. E pouco ou nada mudava. Veio a hipótese de Cesariana. Foi falada, conversada, perspectivada e aceite. Claro que, mais uma vez, surgiu a dúvida de não ser capaz, de tudo fugir ao planeado, de ter falhado. Mas a verdade é que o bebé não estava a conseguir e ainda que não houvesse indicação médica URGENTE para cesariana, era uma hipótese a considerar.

Antes de se avançar, chegou um parteiro-anjo que avaliou a situação e deu a sua opinião. Para ele, havia uma hipótese. Tinha vindo de um parto posterior e sabia que demorava mais do que o comum, que doía mais do que o comum, mas que era possível. Ajustou a posição corporal dela, incentivando as contracções uterinas e a descida do bebé, levou-a para o duche e deu-lhe reforço de analgesia sempre que ela pedia e fez-nos rir, muito. A sua paixão, vocação, intuição e humor foram um tesouro naquela noite!

Às 7h a médica veio para a preparar para Cesariana porque muito pouco tinha acontecido. Mas ela estava ferrada a dormir (bem como o pai) e ela deixou-os estar. Às 9h veio novo médico. E esse momento foi estranho. Entrou ele com duas médicas assistentes a dizer “É a senhora que quer parto vaginal, não é? Então vamos ver.” E fez toque, avaliou a dilatação e a cabeça do bebé. A dilatação estava completa e a cabeça do bebé continuava alta. Mas agora havia esta novidade! A dilatação estava completa!! Perguntamos “Mas é possível parto vaginal? O bebé não está posterior?” Era possível vaginal mas podia ser necessário ajuda de fórceps ou ventosas. Fizeram ecografia e o bebé já não estava posterior, tendo encontrado uma postura mais favorável. A esperança tinha voltado!! O que era preciso fazer então? Voltar a colocar-se de pé e fazer movimentos com as pernas de forma a criar mais espaço na bacia.

Eram 10h30 quando tive de sair (com imensa pena porque queria mesmo muito acompanhar até ao fim!) e eram 14h quando este bebé maravilha nasceu, de parto vaginal, não intervencionado, em postura de gatas!

64 horas depois! Com todo o respeito que podia ter tido e com a força desta mulher furacão que com contracções fortíssimas dizia ao parteiro “São fortes, mas acredito que ainda possa piorar…”

Acredito mesmo que este bebé precisou deste tempo e espaço. Precisou que o respeitassem nesta procura pela saída. Precisou destes pais que sempre se mantiveram em contacto com ele, acreditando que ele sabia o que fazia.

E acredito também que o sistema português precisou deste mulher a parir no hospital para verem o exemplo vivo de alguém que espera por início espontâneo de trabalho de parto (42 semanas+4dias), de alguém a quem a presença de pai e doula fez diferença e a quem a espera e a fé trouxe um parto vaginal poderoso e empoderador!

Para mim foi um ENORME privilégio estar presente. Assistir e aprender com a sabedoria das parteiras, os seus conhecimentos técnicos e médicos e também holísticos e tradicionais e ter contacto com homeopatia, massagem, chás e ervas e ver como funcionam foi ESTRONDOSO. Assistir à força desta mulher (que é a força de todas as mulheres) mesmo quando dizia que não tinha mais. Assistir à ligação deste pai e vê-lo falar com o seu filho chamando-o de “Meu rapaz”. Assistir a um concerto privado durante o parto com a querida E. a tocar e cantar e sentir como isso unifica as pessoas, como tranquiliza e como ajuda no alívio de dor. Assistir à humildade das parteiras quando não há mais que possam fazer e o respeito que tiveram com a escolha do casal. Assistir à doçura desta obstetra-anjo que foi fundamental para a mulher se sentir segura no hospital e assistir à vocação deste parteiro que com o seu conhecimento e humor foi a chave para continuarmos a acreditar no parto vaginal.

Acredito profundamente que este bebé escolheu as pessoas que precisava para ter o nascimento que precisava.

E sou eternamente grata a este casal que me escolheu e me permitiu ser testemunha desta história de AMOR.

 
 


All rights reserved © Catarina Gaspar